O ano é 1930, tenho seis anos e acabo de chegar em São Paulo com o meu pai, minha mãe e minha irmã depois de uma viagem exaustiva de Santos, onde o nosso navio atracou após passar quase vinte dias em alto mar.
Somos procedentes da Hungria e viemos ao Brasil com a esperança de uma vida melhor. Meu pai é alfaiate, minha mãe costureira e os únicos instrumentos de trabalho deles eram uma velha máquina de costura e um velho ferro de passar. Tudo era muito difícil; no entanto uma época em que as crianças ainda podiam brincar na rua.
A comida é escassa, mas no Shabat e nos dias festivos como Pessach*, Rosh Hashana** e Hanuka*** a mesa era mais farta e havia até guloseimas. Estas ocasiões eram de grande alegria para todos. Ganhar brinquedos porém era um sonho impossível, pois o dinheiro era pouco. Meu maior desejo era possuir uma boneca e, não sei por que, sempre pensei que seria o carteiro que iria trazê-la numa caixa grande.
Mas não, o carteiro nunca trouxe nada.
É a minha querida mãe que, no dia do meu aniversário, me faz a surpresa e me entrega uma caixa branca contendo a tão sonhada boneca. É linda. As bochechas são rosadas, os olhos negros e têm um vestido amarelo de bolinhas brancas com babado branco em volta do pescoço.
Ela é todinha de papelão. A caixa é comprida e mais se parece com uma caminha. Há um travesseiro pequeninho amarelo e um cobertorzinho de retalhos coloridos feito pela minha mãe com todo carinho. A minha boneca é a coisa mais linda do mundo. Eu brinco com ela o dia todo; é minha filhinha que eu acalento com carinho, a amiga com quem eu converso e a quem eu conto histórias e tudo que acontece na minha vida de menina. Ela é a minha melhor amiga e para mim ela tem vida. A noite eu só consigo dormir abraçada com ela.
Na época não havia ainda bonecas de porcelana. Existia a boneca de celuloide de material mais resistente, porém altamente inflamável e muito cara.
Uma boneca de papelão era o único presente que a minha mãe conseguiu me dar, mas a alegria e felicidade que ela me trouxe é imensurável e eu a carregava sempre comigo.
No início da minha vida escolar, muito a contragosto, tinha que deixar a minha amada boneca em casa escondida da minha irmã mais nova. Eu a guardava escondida, enroladinha nos cobertores bem debaixo dos meus vestidinhos. Um dia ao voltar da escola, jogo a pasta com cadernos e livros no chão e, como sempre fazia, fui correndo procurar a boneca, mas não estava onde a deixei.
Procuro em todos os outros lugares e, de repente, ao penetrar a pequena sala de jantar da nossa casa dou um grito agudo e terrível. Eu me deparo com uma cena horrível e fico imóvel. Minha mãe vem correndo e assustada para ver o que está acontecendo. Mataram a minha boneca, mataram a minha filhinha, vocês mataram a minha melhor amiga.
Ajoelhada, aos prantos e gritos descubro o que resta da minha boneca. Ocorre que durante a minha ausência, minha irmã de apenas quatro anos encontrou a boneca e brincando, pegou uma bacia de água e deu-lhe um banho. Naturalmente, foi um desastre. Com os restos do papelão molhado na mão, ou melhor, a massa do papelão, eu tento encontrar o rosto da boneca. Estava inconsolável. Eu chorava muito e de nada adiantam as palavras da minha mãe.
A tristeza toma conta de mim de tal forma que a noite fiquei com febre alta. O médico veio me ver, tenta vários remédios, mas a febre não quer ceder. Nada adianta. Então ele chama minha mãe. Clinicamente ela está bem, mas a febre é consequência do estado emocional. Meus pais ficam muito preocupados. Os dias passam e aos poucos a febre vai baixando e devagar estou melhorando. Fiquei fraca, sem febre, mas continuo muito triste. Dizem que o tempo é o melhor remédio. Eu concordo.
A vida retomou o seu curso, voltei a frequentar a escola e a brincar com as minhas amiguinhas. Anos depois meus pais me presentearam com uma boneca de porcelana com cabelo e roupinhas como sempre desejara. Não foi a mesma emoção e nunca consegui esquecer a minha querida boneca de papelão que tanto amei e que ficou e ficará para sempre na minha memória.
* Dia de descanso
** Pascoa judaica, festejando a saída dos judeus do Egito
*** Ano novo judaico
**** Festa das Luzes