Quando nasceu a primeira vez, Tetê não se chamava assim. O nome que lhe deram foi Therezinha Brandolim, filha de modestos descendentes de imigrantes italianos, que eram, para a pequena vizinhança da colônia rural onde viviam, apenas Pedro e Maria Adelaide, seus pais. Uma versão já abrasileirada, talvez para facilitar a integração definitiva no caldinho cultural e social que é o Brasil.
Isso está lá atrás na curva do tempo, nos idos de 1930. A menina, a primeira de nove filhos. Uma vida que se desenhava bem simples, difícil, pobre, de horizonte limitado, digna aos olhos de Deus, mas de realizações escassas aos olhos daquilo que a sociedade estabelecida considera importante. Até o nome do local onde veio ao mundo traduzia essa perspectiva reduzida de existência. Fazenda Corguinho.
Era a roça, sim. O município onde se localizava tem até nome pomposo, poético, talvez buscando inconscientemente compensar a dureza da realidade local. Monte Azul Paulista, interior de São Paulo, lá pelas bandas da região norte do Estado onde a cidade grande de referência é Ribeirão Preto, a quase 100 quilômetros de distância. Mas a poesia parecia distante. Ou pelo menos inacessível.
Isso porque a infância – e depois a adolescência – da menina foi se desdobrando no cenário rude da luta pela sobrevivência. Therezinha cresceu ajudando a família no trabalho cotidiano desde muito cedo. Trabalho duro de verdade, braçal. Colher milho, arroz, café, cuidar de bicho.
Uma vida bem visceral, instintiva, de muito contato com o elemento terra e com a Natureza, sim? Foi assim que a existência foi conformando, configurando, moldando e fazendo se desenvolver, naquele cenário, a menina, moça e mulher Therezinha, seguindo o padrão coletivo que marca o destino de tantos milhões de nós, ou que marcava nessa época histórica do século passado em que o Brasil ainda era uma sociedade predominantemente rural.
Resultados colaterais dessa época continuam aqui, neste tempo atual globalizado de tanta desigualdade, pobreza e dificuldade imensa de ascensão social, tudo transportado para esse ambiente cultural de feitio urbano dito pós-moderno em que nos tornamos. Mas as raízes rurais estão ali, escondidas, como despontam escancaradas nas grandes cidades no caso do sucesso da música sertaneja, por exemplo.
Pois um dos prazeres de Therezinha, foi descobrindo enquanto crescia, amenizando as demandas exigentes do seu meio, era a música de raiz, a de viola, que ela aprendeu a cantar e a acompanhar em segunda voz principalmente o irmão Otávio. Cantava também nas festas religiosas, nas bandas de carnaval.
Apesar das mãos calejadas do trabalho na enxada e na colheita, e do suor amargo pelo pão de cada dia, a menina-moça-mulher vibrava alegria de viver. Esse sol que a fazia brilhar certamente a impulsionaria com entusiasmo pela vida afora e com certeza atrairia para a sua órbita de estrela, no tempo certo, algum pretendente sonhador fascinado pelas suas qualidades pessoais, respondendo ao destino muito vital de quase todos nós de querer constituir família, dar vida a outros seres humanos, cumprir uma demanda biológica, fazer a espécie humana continuar. Assim foi, quando aos 18 anos se casou com Vardo, um romance que desabrochou no carnaval, traduzindo-se numa história matrimonial de uma nova família brasileira.
Não sei contar para você o quanto de sonho romântico acalentou os primeiros anos do jovem casal, mas sei dizer que as respostas às exigências cruas das condições sociais que os cercavam demandaram muita determinação, muita fibra. Para começo de conversa, o primeiro filho, José Carlos, nascido nessa mesma colônia rural que era todo o cenário de vida de Therezinha até então, pegou tétano ainda bebezinho. Fazê-lo sobreviver pediu muita garra.
Garra guerreira que continuou pela simples luta pela sobrevivência primária mesmo, de garantir comida em casa no dia a dia. Por falta de meios ali onde estavam, o casal e o primeiro filho foram arriscar outro rumo no Paraná, em condições bem precárias, onde no começo mal tinham onde morar. Primeiro na roça. Não deu certo. Depois na pequena cidade de Icaraíma, onde Vardo tentou tocar um pequeno comércio. Não deu certo.
No sufoco, a família voltou para São Paulo. Dessa vez, não mais para a roça, mas sim para Ribeirão Preto, onde um irmão do marido daria a ajuda possível para a história de Therezinha não naufragar de vez. À essa altura, já eram cinco os filhos, todos nascidos de parto natural, em casa.
A história de Therezinha não terminou ali, mas um capítulo importante, sim. Vardo faleceu. E ela, já chegando aos 60 anos, reunindo sua dignidade e sua força de guerreira, partiu para a luta que continuava. Foi se empregar de faxineira.
O segundo nascimento
Escondida nas tramas do destino, permanecia viva uma semente de desejo à medida que os anos de Therezinha iam passando. Menina, quis aprender a ler e escrever.
Não, os pais não a impediram. Ela não foi vítima do preconceito – que minha falecida mãe Isabel sofreu, por exemplo – responsável, no passado rural brasileiro, pela proibição imposta pelos pais, das meninas se alfabetizarem. Alfabetização era privilégio dos meninos. Meninas não tinham que aprender mais do que cozinhar, lavar e passar, para se tornarem boas donas de casa. Não se esperava mais do que isso delas.
O problema foi outro. O da imposição da necessidade imperiosa da sobrevivência. Bem que Therezinha tentou. Mais de uma vez. Ia para a escola rural, mas antes mesmo que pudesse escrever as primeiras letras, tinha que abandonar a escola, voltar para o trabalho, porque a colheita começava.
Muitos anos depois, já viúva, tentou um curso de alfabetização de adultos. Não deu certo. Therezinha não se afinou com a abordagem pedagógica infantilizada do curso. Não conseguia se identificar com o mundo que lhe era apresentado como portal para o aprendizado do alfabeto português.
Foi aí, bem mais adiante no tempo após essa segunda tentativa frustrada, que duas anjas e um sábio cruzaram o caminho de Therezinha. Aliás, uma delas já estava no caminho, mas não tinha ainda exercido essa função angelical de fazer brotar, daquela semente, uma flor. De fazer nascer, de dentro de Therezinha, uma segunda vida que estava em silêncio germinando ali, numa longa gestação, mas ninguém tinha percebido.
Pois iria nascer Tetê. Aos 83 anos de idade.
Ela começou a se dar à luz em 2012. A primeira mãe foi a filha, Maria Zulmira de Souza, a Zuzu. Que – veja só, leitor, a costura misteriosa e magistral de como o destino vai tecendo os enredos das vidas -, por uma certa ironia até graciosa da existência, é jornalista. Como sou eu. Ambos, Zuzu e eu, filhos de mães analfabetas.
Muito incomodada com a situação da mãe e com o fato relacionado dela ser uma profissional de comunicação, incluindo na carreira atuação até mesmo em televisão, Zuzu não se conformava. Teve um lance de inspiração. Lembrou-se de quem viria a ser, metaforicamente falando, e de modo indireto involuntário, o pai de Tetê.
O educador brasileiro Paulo Freire foi um genial visionário transformador da educação e da pedagogia, alcançando enorme prestígio mundial. Pude pessoalmente constatar o tamanho de sua fama internacional quando fiz estudos de pós-doutorado na Universidade de Toronto no Canadá e o vi ali como uma das maiores referências teóricas globais no campo da pesquisa avançada em educação. Seu método de alfabetização parte de um levantamento cultural, social e humano do mundo real do aluno, a partir do qual se criam as pontes de conexão entre aquilo que o estudante pode identificar como pertencendo a ele próprio e o que se ensina.
Pois Zuzu teve a feliz ideia de procurar uma ONG especializada no método. Que lhe encaminhou a professora Jany Dilourdes Nascimento, a segunda anja e a segunda mãe de Tetê.
Foi todo um ano de muito amor o 2013, com aulas duas vezes por semana, ao final do qual Tetê começou a existir. Não só como alguém que aos 83 anos descobriu radiante de ver que podia ler os nomes dos produtos nos supermercados ou que podia escrever a lista de compras. Foi mais do que isso. Tetê nasceu também artista. Aos 83 anos, sim.
Explico.
O método Paulo Freire trabalha o aprendizado do aluno estimulando muito todas as funções cognitivas do cérebro humano, não apenas as funções lógicas, como na maioria dos processos educativos ainda vigentes, que se limitam a desenvolver o pensamento concreto, estruturado. Mas trabalham pouco ou nada as capacidades criativas.
A abordagem do mestre pernambucano segue outra linha, antecipando muito de avanços recentes da neurologia, aplicados à educação, que oferecem estímulos ao desenvolvimento cognitivo não apenas através da palavra, mas também por via dos elementos visuais, da música, do ritmo, do movimento corporal.
Por isso Jany empregava com Tetê recursos artísticos como colagens, letras de música, poesias, desenhos, cores. As primeiras produções mais sofisticadas da aluna, com as palavras, foram escrever cartões de Páscoa para os parentes, integrando, assim, texto escrito e os recursos visuais.
Um dia, conta Jany em depoimento que acabou a luz elétrica durante a aula. A professora e a aluna cortaram então tecidos de chita para decorar os cartões. Tetê gostou demais dos recortes, passando por conta própria a aplicar chita sobre placa dura, cartolina e madeira, fazendo quadros.
Esse fato marcante se completa com outro achado. Zuzu tinha descoberto, escondidas debaixo da cama e noutros locais – como em caixas vazias de camisetas Hering -, peças artísticas ainda ingênuas e primitivas que Tetê desenvolvera em segredo, provavelmente desde o final da década de 1990. Criações em guache, aquarela, essas coisas.
O uso da chita, porém, foi o salto quântico de Tetê. Surgiram daí obras exuberantes, explosivas de cores, alegria e radiação de vida. O bom humor sempre presente, por vezes, até no título.
“Alvorada Doida” é um caleidoscópio vibrante de passarinhos, flores, folhas em azul, vermelho, amarelo, verde, laranja, lilás e tantas outras cores e matizes … um oceano de Natureza que engolfa você …enquanto “Pedaços das Minhas Calças” são recortes que fazem imaginar um jardim onde a Natureza concentra uma inebriante dança de cores expressando a diversidade estonteante do reino vegetal… “Bonitão” nada tem a ver com o príncipe encantado de alguém, mas sim com a explosão em vermelho caracterizando o próprio quadro com essa qualidade de beleza. “Nem parece que fui eu que fiz…”, brinca ela com este escritor, confessando sua admiração pela própria obra.
Confessa mais. Que mesmo lá na roça, menina, às vezes riscava com o dedo um desenho na areia, nos intervalos da colheita de café. Rabiscava bichinhos, flores no papel de embrulho, escondia, não contava para ninguém, tinha vergonha.
Tetê passou definitivamente a se assumir artista quando surgiu o convite para a primeira exposição. Aconteceu no Hotel & Spa Panorama de Águas de Lindóia, interior de São Paulo, por ocasião da Copa do Mundo de Futebol de 2014. A seleção da Costa do Marfim se hospedou na cidade, o que ajudou a atrair mais turistas e daí para o pessoal do Panorama pareceu interesse oferecer um atrativo cultural diferenciado.
Não parou mais. A realização de outras exposições e a venda de quadros fez decolar sua carreira tardia de artista cada vez mais reconhecida. A profissionalização pediu o uso das mídias sociais para divulgação do trabalho e a adoção natural de um nome artístico, que é a transformação do apelido de família Tete para Tetê.
As obras de Tetê têm frequentado galerias, museus e exposições, às vezes em locais inusitados. Já estiveram na Pedro Leite Barbearia, em Ribeirão Preto, no Ekoa Café e no Gusta Café Bar Y Gastronomia, ambos em São Paulo. Também templos tradicionais da arte, como o Museu Casa de Portinari em Brodowski, São Paulo, terra natal do famoso artista.
Aberta para o novo e para o coletivo, Tetê já co-criou uma obra de arte com o grafiteiro Lelin Alves em Ribeirão Preto. Já participou de uma iniciativa para embelezar o famigerado Minhocão, via pública elevada na capital paulista. Concebeu, liderou a execução e montou o gigantesco painel “Borboleta” que foi instalado na Associação São Joaquim de apoio à maturidade em Carapicuíba, na Grande São Paulo. Uma peça de arte de cinco metros, que para se materializar no mundo precisou de 60 metros de chita, a colaboração de 300 co-artistas, vários deles participantes da São Joaquim, e também do genro fã incondicional, marido de Zuzu, o arquiteto alemão Uli Zens.
Um – novo – florescer
A inspiradora metamorfose de vida de Tetê tem gerado justas homenagens, sendo uma delas o livro “O Jardim de Tetê”, assinado por Zuzu e pela artista plástica Cristiana Camargo, projeto cultural realizado pelo sistema de crowdfunding, em 2019.
Muitas dessas homenagens focalizam, mais do que a qualidade da arte em si, o admirável caso de redirecionamento de vida na maturidade que Tetê representa. Essa combinação rara despertou o interesse da mídia, tornando Tetê protagonista de matérias jornalísticas em distintos veículos, inclusive em programas de televisão. Daí sua emoção em ter podido interagir em diferentes ocasiões com nomes do show business e do jornalismo como Patrícia Poeta, Cissa Guimarães, Pedro Leonardo.
É por esse ângulo também que o médico Fernando Bignardi, especialista em envelhecimento saudável, tornou-se amigo e deu um depoimento para o livro, realçando um aspecto dessa história no qual embarco. Levo você agora, por conta própria, para uma viagem de informação e reflexão.
Trata-se da questão da neuroplasticidade.
Até há algum tempo, o conhecimento dominante na ciência era de que os neurônios são as únicas células do corpo que jamais se renovam. Quando você perde um conjunto de células nervosas associadas a uma função, pelo envelhecimento natural ou por algum outro acidente da vida, não há o que fazer, dizia a ciência. Por isso é que com a idade avançada você vai perdendo memória. As células ligadas à função vão definhando, morrem. E aí não tem cura. Daí a explicação para o terrível Mal de Alzheimer.
De algum tempo para cá, porém, essa crença do conhecimento científico tem sido questionada por crescente número de estudos que provam o contrário. As células nervosas podem, sim, se renovar. Inclusive em pessoas de idade avançada. E as funções de neurônios que foram definitivamente eliminadas – como por exemplo em caso de acidente grave com perda de massa encefálica – podem ser reativadas, em muitos casos, por outros neurônios que passam a assumir as ações que foram perdidas.
O segredo é o uso dos estímulos adequados para ativar essa nova qualidade cerebral descoberta. A neuroplasticidade. A capacidade flexível do cérebro responder a um processo de crescimento, transformação e rejuvenescimento por caminhos pouco convencionais, mas simples, que envolvem o despertar da criatividade através da arte, da música, da dança, do movimento corporal.
Junto com isso, se entende cada vez mais a importância da intenção. O propósito que você coloca em si mesmo para valorizar sua vida, dando sentido a ela, em cada etapa da sua caminhada por este planeta. A vida, agora se compreende melhor, é movimento, transformação o tempo todo. Assim como cada um de nós é muitos, e não só um, aquele ser com quem nos auto identificamos na nossa história de vida e achamos que somos só aquilo, somente aquilo.
Em cada um de nós existem muitos eus. O eu Therezinha contém dentro de si o eu Tetê. Ambos num só ser. Mas foi preciso um movimento de alma para Therezinha acordar a outra parte dela mesma que nem sabia que existia.
Para esse despertar, o conhecimento científico ajuda, se você quiser. Mas se você não é do tipo mental, nem precisa dele, basta seguir a chave universal que todos os mestres de sabedoria apontam. A chave sugere um movimento para dentro de si e outro simultâneo para fora, em direção a você gerar um benefício saudável para o mundo. Gerar beleza através da arte, como faz Tetê.
Você pode, se preferir, apenas receber a sabedoria inspiradora de Tetê. Pergunto a ela como se sente com as homenagens que tem recebido. E de onde vem a inspiração para continuar a produzir arte.
Ela coloca a mão direita sobre o peito. E diz, simples assim:
“Fico emocionada. Agradeço a Deus por eu sempre ser alegre, por sempre dar a volta por cima dos problemas. E pela inspiração que vem daqui de dentro”.