Kátia Fonseca

Nascida em 1956, na cidade de Santos, no litoral paulista, Katia Fonseca é jornalista e trabalhou por 30 anos numa grande empresa jornalística, localizada em Campinas, para onde se mudou em 1991. Aposentada há dois anos, ela continuou trabalhando e no começo desse ano, decidiu parar de trabalhar com o jornalismo diretamente, como contratada, hoje é freelancer e também crocheteira.

A embaixadora da Virada da Maturidade nasceu com uma deficiência física congênita, que se chama Displasia Diastrófica, e tem como consequência o nanismo. Ela provoca uma deformação óssea nas pernas e nos braços, na coluna, na bacia, e por isso Katia não cresceu. “Eu tenho o tamanho de uma criança de 5 anos. Já nasci com essa deficiência, mas tive uma infância relativamente normal, estudei em escola regular, fiz faculdade, e sempre na batalha aí contra o preconceito”, contou.

Ativista na área dos Direitos Humanos, fundou uma ONG em Campinas de defesa dos direitos das pessoas com deficiência, que já não existe. Depois que completou 60 anos, resolveu também abraçar a causa das pessoas idosas.

A arte, segundo Katia, é um fato principal em sua vida e em sua trajetória, assim como as amizades que construiu ao longo do tempo. “Eu não estaria onde eu estou se eu não tivesse tido amigos muito bons. Aqueles amigos ponta firme, que estão com você como num casamento, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, esses que são os amigos verdadeiros. E isso é uma característica da minha vida, eu tenho amigos que eu conheci muito cedo na vida, a Sandra Gomes (curadora da Virada da Maturidade), por exemplo, eu a conheci no primário”, salientou, afirmando que as relações de amizade, as relações sociais profundas são fundamentais para a qualidade de vida.

Na área artística, ela é atriz e fez teatro desde a adolescência, também como diretora e assistente de direção. “Um grande feito que me deu grande satisfação foi uma peça em que eu interpretei o pintor Toulouse-Lautrec, um pintor francês do final do século XIX e início do século XX, que tinha uma deficiência parecida com a minha, ele tinha nanismo. Eu encenei essa peça, o que me deu grande satisfação. E tenho ela no bolso, de vez em quando eu a apresento por aí”, destaca a embaixadora, que ainda tem bastante intimidade na área musical.

 

ENTREVISTA

 

ATIVISMO

O nome da ONG era Centro de Vida Independente de Campinas (CVI-Campinas). O CVI existe em várias cidades do Brasil. O Centro de Vida Independente está baseado numa filosofia que chama Filosofia de Vida Independente, que foi criada nos Estados Unidos pelos mutilados na Guerra do Vietnã. Então, basicamente, a filosofia é baseada em que as pessoas com deficiência têm o direito de gerir a sua própria vida, então eles estavam contra a institucionalização das pessoas com deficiência. Eles não queriam voltar da guerra mutilados e serem colocados numa instituição. Eles queriam a casa deles, queriam autonomia.

Então, basicamente, é uma filosofia que fala sobre a autonomia da pessoa com deficiência. Essa filosofia se espalhou pelo mundo todo, tem em vários lugares da Europa. Aqui no Brasil também tem São Paulo, Rio Grande do Norte, Brasília, e nós fundamos o CVI-Campinas em 1997. Conseguimos muitas conquistas, por exemplo os primeiros ônibus adaptados para cadeirante foi uma conquista nossa. As urnas eleitorais serem colocadas em um local acessível, no térreo dos locais de votação, também foi conquista nossa. Estou falando disso que aconteceu lá em 1998, 1999, quando nem se falava sobre isso, agora é bastante comum, o Brasil todo já conta com leis que garantem a urna acessível, os transportes acessíveis, mas começamos aqui a nossa luta.

E na verdade o que aconteceu – eu não queria abordar questões políticas, mas não dá para não falar – é que com o governo Bolsonaro houve um esvaziamento de todos os movimentos sociais. Ele acabou com os conselhos municipais, acabou com os conselhos estaduais, dificultou muito, tirou verba… se bem que nós nunca dependemos muito de dinheiro do governo. Mas ele esvaziou esses movimentos, então ficou muito difícil. Essa ONG era gerida por pessoas com deficiência, e a vida da gente começou a ficar muito difícil. A gente não conseguiu tocar a ONG, tínhamos outras coisas para resolver, não tínhamos apoio do governo, e nós acabamos esvaziando as atividades da ONG.

 

A IMPORTÂNCIA DA ARTE

Eu acho que a arte é fundamental na vida de qualquer pessoa. Eu costumo dizer que a arte me salvou. O fato da minha mãe ser professora de piano, ser uma musicista, deu para ela, intuitivamente, a capacidade de encontrar qual a melhor maneira de me criar, porque eu nasci em 1956, quando nem se falava em inclusão social. As crianças com deficiência eram escondidas, ou eram levadas para uma instituição. E minha mãe teve uma luz, ela realmente foi pioneira. Nunca me escondeu, fez questão que eu estudasse em escola regular, fez questão de me levar para todos os lugares públicos, praças, zoológicos, parquinhos, nunca me escondeu. Tinha orgulho de mim e me fez ter orgulho de mim. E eu credito isso à arte.

Eu acho que foi a sensibilidade artística da minha mãe que conseguiu conduzi-la nesse caminho de inclusão sem que ninguém tivesse ensinado nada a ela, sem que ela tivesse visto isso em lugar nenhum. A arte promove a autoestima. Eu acho que a pessoa idosa, se ela for por esse caminho da arte, qualquer uma que seja, que seja um crochê, mas se fizer esse crochê artisticamente, e não apenas de forma utilitária. Por exemplo, eu fiz um tapete, poderia ser um tapete todo preto, e eu resolvi fazer ele todo colorido, então isso já é uma forma de arte em crochê.

Quando a gente fala em arte, muitas vezes as pessoas têm um tom de incapacidade de “Ah, mas eu não canto! Eu não faço teatro”, mas não a verdade é que não precisa disso, porque a arte é uma maneira de ver o mundo. Uma maneira mais sensível, com um olhar mais generoso para o que está ao nosso redor, mesmo diante das adversidades, dos momentos mais trágicos. Se você tiver esse apoio na arte, eu acredito que você possa ter mais qualidade de vida. A arte provoca empatia e abre horizontes, abre a cabeça das pessoas, não se fica naquela mesmice, na rotina. A arte promove surpresas, encantamento, beleza, e tudo isso é fundamental no relacionamento com as pessoas e consigo mesmo.

 

MATURIDADE X ENVELHECIMENTO

Quando eu penso em maturidade a primeira palavra que me vem à cabeça é sabedoria. Eu sei que nem todo mundo que está na maturidade tem sabedoria, mas eu volto a dizer que é uma questão de abrir os horizontes. Para mim, pessoalmente, a maturidade me trouxe mais sabedoria, mais especificamente, paciência. Eu sempre fui uma pessoa muito impaciente, muito intolerante, e hoje eu tenho mais noção do tempo das coisas, de que cada coisa tem o seu tempo. E isso é algo que eu não tinha antes dos 60 anos. Eu sempre queria apressar, queria tudo naquela hora e do meu jeito. Então eu consigo ver que a maturidade me trouxe esse entendimento do momento certo de fazer as coisas, e esperar – esperar era uma coisa muito difícil para mim. Então isso é um aspecto positivo da maturidade, e acho que é um dos principais.

E o aspecto negativo é óbvio, é o desgaste físico. São as dores e as doenças, coisas inevitáveis, que vem com o tempo e com o envelhecimento. Porém, você conseguir alinhar isso com o fator da paciência e da tolerância, você consegue assimilar melhor, não ter tanta impaciência. Inclusive as doenças também têm o seu tempo, demoram alguns dias para serem eliminadas, mas se você souber esperar, você conseguirá superar melhor a gripe, por exemplo. Mas, há algumas doenças que não têm tempo para curar, então você precisa da arte, você precisa da paciência, precisa tirar o seu foco disso para poder viver melhor. E falando de uma ótica mais pessoal, eu que tenho uma deficiência, esse binômio deficiência e velhice é muito complicado, porque acelera um pouco o processo. Então, eu tenho 67 anos, mas o meu físico tem um envelhecimento mais rápido, eu me sinto como se tivesse 70, 75 anos de idade, na questão física, de dores e doenças. Esse é um aspecto negativo, mas que é contornável se a sua cabeça estiver centrada e aberta.

 

DISCRIMINAÇÕES

Discriminação faz parte da minha vida desde que eu nasci, então eu aprendi a lidar. Antes eu era discriminada porque eu tinha uma deficiência, hoje eu sou discriminada porque tenho deficiência e idade avançada. Continuo sentindo, claro, tenho várias situações, inclusive pela internet. Se pensa que a internet é um ambiente mais fácil de “habitar”, mas não é, porque quando você vai interagir a primeira coisa que a pessoa quer saber é a sua idade, então existe muito e eu sinto bastante. Porém, eu tiro de letra, porque como é uma coisa que faz parte da minha vida já há tantos anos, desde que eu nasci. Eu lido de maneiras diferentes a depender do dia, do humor que eu estou. Não tem receita, tem vezes que eu ignoro, tem vezes que eu respondo à altura, vou e bato boca mesmo. Tem vezes que eu aproveito a situação para informar e falar: “Olha, vai ler tal coisa! Procura o site tal!”. Acho que na maior parte das vezes eu ignoro, e quando vejo que há a oportunidade de ensinar alguma coisa, eu ensino.

Não sei dizer se hoje a discriminação que eu sofro seria única e exclusivamente por ser uma pessoa com deficiência ou por ser uma pessoa idosa, e se essas questões vêm de forma separada ou acoplada. Claro que quando eu era mais nova era somente por causa da deficiência. E eu não tenho nenhuma situação para citar em que eu tenha sido discriminada por ser idosa e não por ter uma deficiência, porque as coisas estão muito juntas. É uma coisa só, é a minha pessoa. É uma pessoa que tem deficiência e que, agora, tem idade, então eu não consigo separar isso, acho que vem tudo junto.

Também não sei se hoje eu sofro mais ou menos do que antes, não há como dizer, porque os tempos são outros. Ainda tem muito preconceito, mas, de qualquer maneira, tem sido muito falado, tem sido muito debatido. Então hoje, pelo menos no núcleo em que eu vivo, na minha bolha, eu sinto pouco essa discriminação, porque eu também não vou me aventurar em um lugar em que eu sei que as pessoas são preconceituosas, a não ser por uma necessidade.

HOBBIES E PRAZERES

Eu vejo muito filme, e agora melhorou porque graças à internet a gente pode ver filme em casa, mas eu sempre fui muito no cinema. Livros, eu comecei a ler mais depois de idosa, eu lia menos. E a maravilha do computador, que a gente fica nas redes sociais, uso bastante hoje em dia, não porque eu estou idosa, mas sim porque é um recurso relativamente recente, que não existia quando eu era mais nova. As redes sociais me distraem muito. Jogos de computador, aqueles mais bobinhos, também. Jogar em geral é uma coisa que eu sempre gostei muito, só que a gente fazia isso presencialmente, e isso pode ser uma coisa que tenha mudado com a idade, que é uma maior dificuldade de reunir pessoas em casa para fazer atividades em conjunto, atividades sociais.

Antes eu recebia muita gente em casa, muitos amigos, fazia reuniões, e hoje está mais difícil. As pessoas não se visitam tanto, não vão tanto na casa dos outros, então a internet acabou tampando esse buraco, o que não é o ideal. Eu preferia que fosse presencial. Então por alguns motivos, aí sim dependentes da idade, as pessoas não vão tanto na casa das outras. Acho que a pandemia foi um componente importante nessa mudança, mas não o único, porque agora nós já estamos vivendo uma certa tranquilidade e essa nova dinâmica se mantém. Acredito que a idade seja o principal mesmo, e digo por mim também, porque eu tinha mais autonomia para sair de casa, eu conseguia ir ao banheiro sozinha, por exemplo, e hoje eu já não consigo, por conta da idade, então eu preciso de alguém que me acompanhe nas saídas para que possa me ajudar na hora de ir ao banheiro.

Esse é um fator que me fez parar de ir em bares, parar de ir em festas, porque nem sempre eu tenho alguém para me acompanhar, e quando tem, eu tenho que pagar. Então fica mais barato ficar em casa e chamar as pessoas para virem até aqui. Ao mesmo tempo, pensando na experiência das outras pessoas, cada um deve ter uma dificuldade diferente que impeça a saída, que não deixa tanto que eles venham até a minha casa. Eu acho que o envelhecimento acaba dificultando mais que as pessoas tenham esses momentos de lazer fora de casa.

A minha diversão hoje é essa, internet, filmes e agora esse jogo de buraco. O envelhecimento me impede de sair de casa com a mesma frequência que eu costumava sair antes. Eu estou muito mais ligada na internet, pela facilidade, e nos streamings da vida. Apesar de não ter a sala escura do cinema, eu prefiro hoje mil vezes assistir alguma coisa por streaming a sair de casa, ir ao cinema e pegar fila. Em casa eu uso andador e para sair eu uso cadeira de rodas, então achar um carro que caiba a cadeira, achar alguém que me acompanhe até o cinema, tudo isso dificulta por causa da idade. E a gente vai ficando mais preocupada. Minha médica costuma dizer que não é preocupação e sim cautela, então a gente vai ficando mais cauteloso, não se arrisca tanto. Eu sempre me arrisquei muito durante a vida toda, fui até para a Europa, totalmente arriscando, não sabendo o que eu ia conseguir. Mas é isso, jovem não tem medo, e aí com a idade vem esse temor de que não dê certo, de passar por alguma situação constrangedora, eu acho que o envelhecimento traz isso, uma maior cautela, que eu chamo de temor mesmo.

A VIRADA DA MATURIDADE

Eu resolvi apoiar a Virada da Maturidade por conta do meu histórico de ativismo, de militância política, de cuidado com políticas sociais, e, também, por conta da questão da arte. Como eu acho que a arte é fundamental na vida de qualquer pessoa e que pode ajudar muitas pessoas idosas, eu resolvi aceitar esse convite porque sempre que eu tenho uma oportunidade de falar, de me posicionar, de dar o meu depoimento, de colocar a minha experiência e a minha vida a serviço de melhorar a qualidade de vidas idosas, eu topo. E é fundamental projetos como esse, para poder divulgar a arte e que existe vida no envelhecimento, vida boa, vida divertida. E tudo isso é a arte.

INSPIRAÇÕES

Eu acredito que a minha experiência pode ajudar muito outras pessoas, porque se eu consegui, qualquer um consegue. Frases, inspirações e artistas é o que não falta na minha cabeça. O próprio Toulouse-Lautrec, que eu citei que eu fiz a peça dele, é um depoimento de vida maravilhoso. Apesar dele ter morrido cedo, ele faleceu com 37 anos de idade, ele teve uma vida muito difícil por conta da deficiência, e eu acho que tem muita coisa em comum com a vida das pessoas idosas, que é a solidão, que são as doenças, as dores etc. Ele era um artista, um pintor, hoje universalmente conhecido. E eu acho que se não fosse a arte, ele teria uma vida muito mais infeliz. E nós temos exemplos nacionais maravilhosos também, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Ney Matogrosso, que se apresentou no festival The Town rebolando e pulando feito um moleque. É maravilhoso isso. Quando você vê um Gilberto Gil, com mais de 80 anos, é um exemplo que tem que ser mostrado e as pessoas têm que conhecer. Maria Bethânia…Eu nem vou entrar nos internacionais, só aqui no Brasil nós temos uma geração de artistas e atores exemplar, contando com Lima Duarte e Fernanda Montenegro. Todas essas vidas valem a pena serem conhecidas e serem mostradas.