Luís Baron é um homem cis, tem 63 anos e mora na capital paulista, no bairro da Vila Mariana. “Escrevo artigos, sou articulista, faço palestras, faço uma porção de coisas voltadas para as velhices LGBT e para as velhices como um todo. Meu trabalho é necessariamente falar sobre as questões do idadismo, dos preconceitos e da homofobia; enfim, tudo que envolve a sexualidade das pessoas idosas. As pessoas idosas geralmente são consideradas assexuais e a gente diz: ‘Não, as pessoas idosas não são assexuadas. Elas são pessoas que têm a sexualidade que elas quiserem, assim como qualquer outra pessoa’”, conta.
Atuante na Associação Eternamente SOU, o embaixador da Virada da Maturidade trabalha para superar a cultura de velhices heteronormativa e assexuadas. “Trazer a questão da sexualidade para dentro dessa velhice, trazer a potência dessas velhices como elemento vivo, produtivo e que enxerga futuro é uma dificuldade, mas a gente está aí para isso mesmo. Eu digo o seguinte, o que é bom para as velhices LGBT é bom para todas as velhices. O que é bom para as velhices normalmente heterocentradas necessariamente não é bom para todos, mas quando a gente fala em diversidade, isso atinge todas as pessoas”, salientou.
Consciente de sua idade, ele conta que tem absoluta segurança com relação a isso e zero vitimização. “Eu sempre falo que eu não sou protótipo do viado velho. Eu não me permito, porque eu sempre acreditei que o problema não é meu, assim como o problema do etarismo não é meu. Ele me atinge, mas ele não é gerado por mim. Então eu chego hoje, depois de muito tempo, de viver muitas felicidades, mas muitas misérias. Eu sou da geração que começa no regime militar, que passa pela epidemia e pandemia do HIV/AIDS, que perde um monte de gente querida, que tem que refazer seu ciclo de amizades, começar tudo de novo. Eu tenho gratidão por chegar aqui. Meus amigos, infelizmente não puderam, mas eu estou muito grato”, destacou.
Confira os principais trechos da entrevista de Baron
MATURIDADE X ENVELHECIMENTO
Essa é uma realidade: conheço muita gente que chegou aos 50, 60, 70 anos, que ainda tem uma imaturidade intrínseca, mas isso é outra questão. O envelhecimento, sim, quando ele está junto da maturidade, são duas coisas que quando se juntam são extremamente positivas e produtivas, porque você chega no momento da sua vida que você está maduro para aquela existência, que não significa caído do pé, porque também tem gente que confunde maduro com caído do pé. Não é nada disso. É maduro com relação ao olhar que você tem sobre a vida, ao olhar que você tem sobre as outras pessoas, sobre si próprio, as suas potencialidades que já foram desenvolvidas e que tem outras para serem desenvolvidas.
A maturidade trouxe pessoalmente para mim uma tranquilidade muito grande de ser quem eu sou e achar que eu estou bem aqui onde estou. Eu posso fazer outras coisas, posso mudar de lugar a hora que eu quiser, do jeito que eu quiser. É uma questão de bem-estar emocional com relação ao resto. Eu tenho um filho de 18 anos, tenho amigos, um trabalho a ser desenvolvido e responsabilidades. Tenho muita coisa que eu não imaginei que nesse momento da minha vida eu fosse fazer, mas estou fazendo e eu acho muito legal, porque eu adquiri uma certa maturidade para poder lidar com essas questões. No meu caso, ela veio junto com o envelhecimento.
ENVELHECER: PASSADO, PRESENTE E FUTURO
Eu acho que a gente está falando de um conceito ocidental sobre as questões etárias. O que é uma pessoa velha ou envelhescente que já esteja nos seus 50, 60, 70 anos? O capital parte do pressuposto de que essa pessoa já é não produtiva e não reprodutiva. Então, para o capital, esse é um elemento de descarte e a sociedade acaba reproduzindo esses padrões. Enquanto a gente trabalhar com a ideia de que o envelhecimento e a velhice são as sucatas da existência, a gente está cometendo um grave erro, porque, na realidade, a gente está desperdiçando uma força de conhecimento e de trabalho muito valiosa.
É muito curioso, porque as empresas ainda não perceberam, o próprio SUS ainda não percebeu que, em 2050, nós teremos mais de 60 milhões de pessoas acima de 60 anos. Como é que o SUS vai absorver esse contingente? Como é que as empresas vão absorver esse contingente? Como é que nós vamos trabalhar com esse contingente sem achar que essa sucata não serve para nada? Então há uma necessidade de mudar os paradigmas relacionados a essas velhices de hoje, para que as do futuro sejam muito mais bem aproveitadas e muito mais felizes.
Quando você trabalha com velhices LGBT e com velhices como um todo, a gente não trabalha com o dia de hoje só, com o cuidado dessas velhices. O cuidado é fundamental, mas a gente também tem que trabalhar com a projeção do que será ser uma pessoa idosa, uma pessoa velha daqui a 20, 30, 40 anos. Será que ainda, daqui a 30 anos, o profissional vai perder o seu espaço na empresa porque atingiu a idade de 50 anos? Será que vai ter adolescente, jovem suficiente para suprir esse mercado de trabalho? Não vai, porque vai ter mais velho do que adolescentes. Como é que nós vamos fazer?
Falar sobre envelhecimento hoje é prever o futuro mais adequado para as pessoas idosas e para o mundo como um todo. Falar sobre o envelhecimento, assim como falar sobre as questões LGBTQIAP+, faz bem para todo mundo. Faz bem para as pessoas idosas hoje, mas faz bem para as que serão idosas daqui a 30, 40 anos. Quando eu era novinho, meu avô tinha a minha idade e ele era muito velhinho, era um senhorzinho já aposentado, que foi sapateiro a vida toda. Eu já tenho a idade que ele tinha e eu não consigo me enxergar nele. Eu não sei até quando essa potência pode existir ou não, mas isso não interessa. Você segue caminhando. Envelhecer não é nada além do que o passar da vida, esse movimento de caminhar por ela.
DISCRIMINAÇÕES
Eu faço parte de uma comunidade que é atípica. A comunidade LGBTQIAP+ é atípica, porque nós somos tratados como pessoas atípicas desde sempre. Aliás, tem um filme que chama “Tom na Fazenda”, que eu recomendo para quem não é da comunidade entender quais são os mecanismos de opressão que podem ser exercidos. Essa comunidade tem especificidades muito grandes, porque ela desenvolveu outros mecanismos de sobrevivência. Ela também é uma comunidade feita de muitas camadas socioeconômicas e culturais. Será que um homem gay preto da periferia envelhece como eu? Será que uma mulher trans preta envelhece como eu? A gente é cheio de peculiaridades. Na minha comunidade, as pessoas são consideradas velhas muito cedo. A Eternamente SOU trabalha com velhices LGBT 50+. A OMS (Organização Mundial da Saúde) diz que é 60+, mas nós aqui dizemos que é 50+. Por que? Porque na nossa comunidade a juventude é uma moeda de troca muito poderosa, não só juventude em anos contados, mas como parecer jovem, estar jovem, se comportar como jovem. Então é claro que já sofri por ser um cara de mais de 60 anos, assim como já sofri por ser um cara de mais de 50, e por ser um adolescente gay. Os sofrimentos vão mudando.
Hoje a questão etária é mais importante do que qualquer outra questão da minha vida, porque eu tenho que me reafirmar como homem, como potência o tempo todo, sem estar sendo confundido com essa sucata que nós havíamos falado anteriormente. Então existe uma necessidade de diálogo intergeracional muito forte dentro da minha comunidade e fora dela também, porque são polos que tem que aprender como é que essa existência misturada pode conviver muito bem e criar mecanismos de futuro muito mais saudáveis para aquela própria geração que hoje se encontra jovem.
ETERNAMENTE SOU E A VELHICE 50+
Para a comunidade LGBTQIAP+, especialmente para os homens gays, para as mulheres trans, para as mulheres lésbicas também, a juventude é uma potência muito forte. Ela traz benefícios, e isso é para todo mundo, não é só dentro da minha comunidade. Dentro da minha comunidade, para você ser aceito, você passa uma vida sendo rejeitado. Então a primeira coisa que eu faço é performar uma aparência, um jeito de ser, de parecer com outras pessoas. Há uma necessidade de eu me transformar para parecer com o objeto que eu desejo para que eu seja aceito dentro desse grupo. Nisso a juventude está diretamente implicada. Por isso, a gente traçou esses 50 anos como o limite mínimo para a gente começar a trabalhar com essas pessoas. Nos chegam aqui pessoas de 54, 55 anos que são taxadas como velhas dentro da comunidade. Como não acolher? Por que que eu tenho que respeitar a idade da OMS? A OMS não tem feito grande coisa pela minha comunidade.
Na realidade, quando a gente fala em pessoas trans, a gente tem até pessoas de 43 anos, porque esse é um outro envelhecimento que vem muito antes. Algumas pessoas falam erroneamente: “as pessoas trans vivem 35 anos”. Não é isso. As pessoas trans realmente são as mais assassinadas do mundo e neste país, mas elas começam a morrer socialmente aos 30 e poucos anos, porque é quando elas não conseguem mais trabalhar, elas não conseguem mais ter um local em que se encaixam, não conseguem ter um núcleo social bacana e uma rede de apoio. Elas têm uma morte. Então a gente não vai respeitar a OMS, a gente vai respeitar as pessoas que nos procuram. Com LGBTQIAP+ jovem tem um monte de gente trabalhando, mas com as pessoas velhas só nós.
PATERNIDADE
Meu filho é o único grande marco da minha vida, o resto é tudo periférico. Meu filho é a realização da impossibilidade, é como as impossibilidades vêm mais dos outros do que da gente mesmo. Meu filho é a possibilidade de colocar em prática o não-controle, como eu não controlo nada nessa vida. Ele é o amor, ele é o amor absoluto que eu não tinha experimentado antes e que é para o resto da minha vida. Meu filho é o marco da minha vida.
Eu não lembro o que era minha vida antes dele. Não é que minha vida mudou apenas; minha vida mudou radicalmente, eu mudei demais. Meu filho é muito parecido comigo. O que eu era antes dele? Eu não sei. Eu nasci para ser pai e durante muitos anos achei que isso não era possível. Sou soropositivo há 36 anos e eu sou de uma época que eu achava que ia morrer. Então ter um filho era um sonho impossível, mas com o passar do tempo e minha saúde super estabilizada, eu perguntei para o meu médico se eu poderia ter um filho. Ele me disse: “Luís, você está super habilitado para ter um filho”. E aconteceu, de outras formas, ele chegou para mim.
Eu acho que a vida tem um frescor e você precisa estar pronto para receber aquele vento, porque ele pode virar sua vela de outro jeito, pode virar seu barco para outro lado e você tem que estar pronto para navegar daquele jeito.
HOBBIES E PRAZERES
Eu sempre li, mas como eu sou um sujeito muito cartesiano, eu lia coisas úteis. Então eu precisava aprender alguma coisa, eu lia; precisava fazer tal coisa, eu lia. Agora não, agora eu sou um leitor inútil (risos). Eu adoro poesia, eu escrevo. Eu tenho alguns objetivos com relação a literatura… E devo confessar que eu gosto muito de academia, gosto mesmo de esporte, exercício físico.
VIRADA DA MATURIDADE
Eu acho que esse trabalho que a gente faz, o trabalho com pessoas idosas, é um trabalho muito delicado que deve ser feito em todos os lugares. Eu tenho uma teoria de que onde chamarem a gente tem que estar e se não chamar a gente tem que estar também, porque quanto mais gente ouvir, mais a gente falar sobre esse assunto, maior relevância ele vai ter, porque relevante ele já é, só que as pessoas não enxergam.
INSPIRAÇÃO
Eu fiz terapia uma época e eu achava legal porque o meu terapeuta e eu acabamos ficando amigos. Fiz uns seis meses de terapia e depois ele me chamou para tomar um licor e falou: “Já está bom, vamos fazer outra coisa”. Um dia a gente saiu para almoçar e ele falou: “Já que a gente não é mais paciente e terapeuta, eu vou te falar um negócio: a vida é igual paraquedas só funciona aberto”. E essa é uma filosofia tão vagabunda de boteco, mas é tão de verdade. Se você estiver ali fechadinho, não vai acontecer nada, não vai rolar. Se joga, isso é a vida, é a mágica.